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Maria tem 35 anos, é divorciada e tem uma filha de 8 anos. Trabalha como escrevente em um Tabelionato de Notas e, por isto, sabe que, mesmo no regime da separação convencional de bens, eleito em pacto antenupcial, o cônjuge ou companheiro é herdeiro em concorrência com os descendentes, na forma do artigo 1829, inciso I, do Código Civil.

Em razão disto, Maria não quer saber de namorar, manter união estável ou muito menos se casar. Apesar de ser ainda jovem, tem muito receio de manter um relacionamento e por algum infortúnio da vida, vir a faltar prematuramente, tendo sua filha que dividir seu único bem, um apartamento adquirido com muito esforço, com eventual companheiro ou marido que venha deixar.

É sabido que o namoro não gera efeitos patrimoniais, de forma que alguns poderiam argumentar que Maria poderia permanecer somente neste tipo de relacionamento, resguardando sua filha. Contudo, dada a linha tênue que separa namoro e união estável atualmente, o seu medo é totalmente fundado. Quem garante que o namorado não tentará alegar e eventualmente conseguir a configuração da união estável, herdando metade do apartamento que ela deixar?

Ademais, é justo que Maria não possa viver em união estável ou mesmo casar-se em razão de regras sucessórias escritas na década de 70, época em que não havia sequer sido publicada a Lei do Divórcio, que é de 1977?[1] Sim, o Código Civil “atual”, publicado em 2002, foi escrito na década de 1970[2]. Ou seja, já nasceu velho.

Fruto da mentalidade de outrora e de uma Sociedade que não existe mais, por certo que o Código Civil precisa de reformas urgentes, especialmente no que concerne ao Direito Sucessório. Com efeito, a sociedade é lebre e o Direito é tartaruga, não acompanhando o legislador as mudanças, evoluções e anseios sociais e as novas formas de relacionamentos e de famílias.

Diante disto, a possibilidade de afastar o direito concorrencial em contrato de convivência ou pacto antenupcial, retirando o companheiro ou cônjuge da herança quando em concorrência com descendentes ou ascendentes, vem ganhando cada vez mais respaldo doutrinário. Capitaneada por Mário Delgado e Rolf Madaleno, a ideia vem recebendo adeptos, havendo vários doutrinadores, antes contrários, mudando de opinião para entenderem pela possibilidade e validade de tal cláusula.

Ora, a maior parte das pessoas que se casam no regime da separação total de bens convencional, especialmente as pessoas que já têm filhos de relacionamentos anteriores (famílias mosaico), quer e imagina que tanto em vida, como na morte, os patrimônios sejam totalmente blindados e não se misturem. De fato, em vida, não se misturam, e, em caso de divórcio, cada um permanecerá com o seu patrimônio individual. Porém, em caso de sucessão, isso não acontece, conforme a previsão estabelecida no artigo acima mencionado, que coloca o cônjuge como concorrente na herança com descendentes e ascendentes.

Esta busca pela proteção patrimonial dos filhos diante de um novo relacionamento não é de interesse somente das pessoas ricas. Na verdade, o cotidiano dos Tabelionatos de Notas mostra que é um grande equívoco afirmar que esse tema é de interesse somente de pessoas mais abastadas, pois, independentemente do tamanho do patrimônio, seja ele constituído por inúmeros imóveis de alto padrão ou apenas por um imóvel onde reside, como é o exemplo da Maria, a importância para o proprietário daquele patrimônio é a mesma, ou seja, aquilo é tudo que ele tem, e certamente deseja que fique para seus filhos.

Outra afirmação injusta é a de que os Tabeliães de Notas, que entendem pela possibilidade de inserir no pacto antenupcial o desejo dos nubentes de não concorrerem na herança um do outro, fazem isso por interesse financeiro, pois, os que aceitam, farão mais pactos do que os que não aceitam.

Em primeiro lugar, essa afirmação demonstra total desconhecimento sobre a atividade notarial, considerando que os Cartórios, em inúmeras pesquisas realizadas, são as instituições de maior credibilidade na sociedade quando se trata de confiança do usuário.

Em segundo lugar, os pactos antenupciais estão longe de gerarem qualquer tipo de expectativa ou interesse financeiro, uma vez que são os atos menos praticados nas serventias notariais, representando menos de 1% do faturamento, além do fato de os valores cobrados pelos pactos contidos nas tabelas de todos os Estados serem muito pequenos, o que poderá ser verificado pelos leitores ao final deste artigo.

Desse modo, não há interesse algum por parte dos Tabelionatos na tomada de medidas que visem à realização de mais pactos em sua serventia, primeiro pela idoneidade dos tabeliães de notas que nunca aceitariam inserir nos atos notariais algo que possui divergência de entendimento somente pelo fato de obterem algum lucro, e, principalmente, pela inexistência de expectativa de lucro nesse tipo de ato notarial.

Na verdade, muitos notários, amparados na sua independência funcional, prevista no artigo 28, da Lei 8.935/94, aceitam inserir esse desejo no contrato de convivência ou no pacto antenupcial sensíveis e atentos à realidade social, deixando sempre claro às partes, contudo, sobre a divergência existente sobre o tema. Neste sentido, aliás, são as recém-publicadas Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Parte Extrajudicial, que autorizam expressamente o notário a prever tal cláusula:

Art. 390. Da escritura de reconhecimento de união estável, dentre outras, poderão constar cláusulas patrimoniais dispondo sobre o regime de bens, incluindo a existência de bens comuns e de bens particulares de cada um dos conviventes, assim como cláusulas existenciais, desde que não vedadas por lei.

§ 3º. A cláusula de renúncia ao direito concorrencial (art. 1.829, I, do CC) poderá constar do ato a pedido das partes, desde que advertidas quanto à sua controvertida eficácia.

Com efeito, a previsão da norma do Rio de Janeiro é a tradução do respeito ao afeto enquanto núcleo constitutivo da família, enquanto princípio constitucional implícito[3]. A possibilidade de inclusão na escritura pública de pacto antenupcial ou de declaração de união estável da renúncia ao direito concorrencial significa dar uma “chance” às pessoas, dar uma chance à Maria, de viver o afeto com plenitude e tranquilidade, uma chance de ser feliz. A doutrina que antes era majoritária no sentido da nulidade de tal cláusula vem se modificando, de forma que a previsão da renúncia ao direito concorrencial nos contratos de convivência e nos pactos antenupciais é essencial para que, no futuro, tal tema seja enfrentado pelos Tribunais e Maria possa ter uma chance do seu desejo ser respeitado.

Veja-se, a propósito, mais um exemplo que há na renúncia ao direito concorrencial uma chance de plenitude na vivência do afeto: Eduardo e Mônica têm mais de 50 anos, se conheceram e começaram a namorar. Ambos são divorciados, e em seus relacionamentos anteriores tiveram filhos. Eduardo é advogado, possui dois imóveis, um deles é sua residência e também seu escritório, e o outro ele aluga. Mônica é arquiteta, possuí três imóveis, mora em um deles, tem escritório em outro, e outro ela aluga. Ambos têm uma vida considerada de classe média. Tanto Eduardo como Mônica têm projetos profissionais para conquistar mais bens, e garantir um patrimônio um pouco maior para deixar para seus filhos como herança. Como ainda são novos e possuem uma vida pela frente, Eduardo e Mônica desejam se casar, mas nenhum dos dois quer misturar o patrimônio que já possui ou venha a conquistar, por isso desejam escolher o regime da separação de bens, onde só irão compartilhar a vida amorosa, e não a financeira, não misturando seus bens. Tanto Eduardo como Mônica não desejam receber ou comunicar bens com o outro, muito menos desejam herdar bens um do outro, diminuindo o que os seus filhos receberiam. Dessa forma, no pacto antenupcial querem deixar assentes esses desejos de não participarem da concorrência sucessória um do outro, pois seria injusto, na visão deles, prejudicarem seus filhos. Não só querem que seus filhos não sejam prejudicados, mas, também, não desejam prejudicar os filhos do seu futuro cônjuge. Porém, se esse direito lhes é negado, é criado um cenário de medo e incertezas, que acaba fazendo com que adiem o casamento, podendo inclusive fazer com que desistam de se unirem.

Assim como Eduardo e Mônica, e também Maria, do exemplo trazido no início deste artigo, muitos acabam prorrogando ou até deixando de constituir uma família, em razão de parte da doutrina e, inclusive, de algumas decisões judiciais do Estado de São Paulo[4], que entendem que a cláusula de renúncia ao direito concorrencial é nula por contrariar norma de ordem pública, prevista no artigo 426, do Código Civil, o qual proíbe a contratação de herança de pessoa viva.

Várias são as situações indesejadas e prejudiciais que estão presentes atualmente na sociedade por causa dessa interpretação, no entender dos autores, equivocada.

Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar os motivos pelos quais os autores entendem que a renúncia ao direito concorrencial em pacto antenupcial e em contrato de convivência, em que o casal afasta, reciprocamente, a participação na herança um do outro, quando em concorrência com descendentes e ascendentes, não está abrangida pela vedação do artigo 426, do Código Civil, sendo, portanto, perfeitamente válida e eficaz.

Para tanto, privilegiando a didática e a melhor compreensão do tema, os argumentos serão divididos em itens, a seguir relacionados.

Clique aqui e confira a coluna na íntegra.

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[1] Lei 6.515/77

[2] “(…) o Código Civil foi aprovado nos anos 2000, mas foi produto de um debate que se fez na década de 70, um debate anterior a inúmeras questões, que somente se colocaram tempos depois, diante da sociedade e das escolhas legítimas das pessoas. Portanto, o Código Civil é de 2002, mas ele chegou atrasado relativamente às questões de direito de família.” Conforme Voto do Ministro Luis Roberto Barroso, do STF, no julgamento do RE 646721, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017

[3] A Carta Constitucional trouxe à sua seara outros arranjos familiares que não somente aquele oriundo do casamento, “(…) e o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações afetivas distintas do casamento”. In: LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In:DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[4] Processo Digital nº: 1022765-36.2023.8.26.0100.


Fonte: Migalhas

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