Fidelidade tem origem no latim fidelis, no sentido ser fiel, leal, constante e verdadeiro, ao passo que a infidelidade significa a qualidade de quem é infiel, ausência de probidade, traição, perfídia [1].
Na seara do direito privado, duas situações de infidelidade eram especialmente apenadas: a do depositário infiel e a dos cônjuges adúlteros.
A prisão civil do depositário foi considerada inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no direito nacional [2], subsistindo, apenas, a responsabilização civil [3] pelos danos que a sua infidelidade causar a terceiros.
E o adultério foi descriminalizado pela Lei nº 11.106/2005, que revogou o artigo 240 do Código Penal. Atualmente, as únicas referências legislativas expressas à fidelidade como dever jurídico encontram-se nos artigos 1.566 e 1.576 do CCB, referentes ao dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges, desde a celebração do casamento até a data da separação de fato e cujo mero descumprimento não gera danos de qualquer natureza [4].
O dever de fidelidade no casamento (e que se equipara ao de lealdade, na união estável) significa e exige dos parceiros conjugais serem leais e fieis, um ao outro, nos planos físico e moral, e o seu descumprimento ocorre pela traição dessa confiança, quer seja pela prática de atos de conteúdo sexual, com ou sem conjunção carnal, quer pelo envolvimento em atividades românticas ou emocionais, com terceiros alheios à sociedade conjugal e sem o conhecimento ou o consentimento do outro cônjuge.
A fidelidade no plano físico não se coaduna mais com a exigência pretérita da manutenção de relações sexuais exclusivamente com o outro cônjuge. O dever de fidelidade (e também o de lealdade) será cumprido ainda que os cônjuges mantenham relacionamentos extraconjugais paralelos ou simultâneos ao casamento, desde que isso faça parte do pacto de conjugalidade ou de convivência estabelecido entre o casal, sendo expressamente “defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” (CCB, artigo 1.513). Também não é de se confundir fidelidade com monogamia, a que se opõem a bigamia e a poligamia, caracterizadas pela simultaneidade de mais de um casamento ou de um matrimônio entre mais de duas pessoas [5].
Por outro lado, depois que a EC 66/2010 extirpou a culpa da separação e do divórcio, extinguindo as sanções civis pela violação dos deveres matrimoniais, a infidelidade física entre cônjuges e companheiros perdeu qualquer protagonismo no direito de família. Em processos litigiosos de dissolução conjugal ou convivencial, praticamente, não se discute mais se um ou outro foi infiel, questão que se resume, quando muito, a alegações em tom de desabafo ou de agressão de uma das partes contra a outra e que são completamente desconsideradas pelos juízes.
Nesse contexto, uma outra modalidade de infidelidade ganhou destaque: a infidelidade financeira, consistente na traição da confiança por parte daquele que detém a administração do patrimônio comum, mediante uso de ferramentas jurídicas para evitar ou fraudar o pagamento da meação devida ao outro cônjuge ou convivente, em decorrência do regime de bens de natureza comunitária (comunhão parcial ou universal). Esse tipo de conduta, independentemente das sanções aplicadas à fraude, caracteriza violação ao dever de fidelidade, no plano moral [6].
Diversos são os mecanismos previstos na legislação e utilizados nos atos de infidelidade financeira, com o intuito de fraude, como é o caso das sociedades de “fachada”, com sócios aparentes e sócios de fato, criadas para acolher bens desviados do acervo comum partilhável, o que tem pavimentado o uso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica inversa, com muita ênfase nos litígios de família, de modo a que o patrimônio da pessoa jurídica possa fazer frente a obrigações dos sócios de fato ou de direito.
Como forma de escapar ao incidente de desconsideração, com frequência, o trust do direito anglo-americano vem sendo utilizado para burlar os direitos de cônjuges e companheiros [7].Ficou famosa entre nós uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a utilização de trust como instrumento de fraude à lei, no caso de um político que havia afetado o patrimônio para a formação de um trust em jurisdição estrangeira, estipulando-se, em seguida, como seu único beneficiário. Não é incomum que o direito empresarial, por meio do uso abusivo da sociedade e contra os seus princípios, propicie uma indesejada desobediência às normas de ordem pública.
Igualmente comuns situações de atos simulados praticados com o fito de prejudicar a meação. Um dos exemplos mais visualizados na prática da advocacia é o de um bem comum, vendido a interposta pessoa por preço vil, com o intuito de retirá-lo da futura partilha, e, após o divórcio, é alienado “de volta” ao ex cônjuge pelo terceiro adquirente.
Em se tratando de ativos digitais, a infidelidade financeira tem se tornado cada vez mais sofisticada, com cônjuges e companheiros, em processo de planejamento para a dissolução conjugal, valendo-se de criptomoedas e propriedades no metaverso para ocultar da futura partilha bens comuns sujeitos à comunhão.
Recentemente, foi noticiado na imprensa o caso de uma dona de casa americana cujo ex-marido havia ocultado cerca de US$ 2,3 milhões em uma conta na coinbase durante o processo de divórcio. As moedas foram transferidas para endereços fora da coinbase em várias transações, dificultando a recuperação desses ativos, segundo afirma a reportagem [8].
Ainda assim, apesar da complexidade do rastreamento de criptomoedas em casos de fraude à partilha, os advogados estadunidenses conseguiram, mediante intimação de corretoras centralizadas e análise forense de dispositivos eletrônicos, como computadores e celulares, identificar endereços de carteira, possibilitando a investigação na blockchain. O passo seguinte foi a obtenção de uma ordem judicial para a divulgação das informações da conta da coinbase e o rastreamento dos endereços para onde os bitcoins foram transferidos.
O caso teve final feliz (para a mulher), que recuperou os bitcoins desviados, mas poderia ser o contrário, pois é possível guardar criptomoedas em locais que não podem ser rastreados.
[1] Cf. Enciclopédia Saraiva do Direito. Coord. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1.977, v. 1., p. 139. [2] Súmula Vinculante nº 25: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. [3] CPC, artigo 161. O depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada, mas tem o direito a haver o que legitimamente despendeu no exercício do encargo. Parágrafo único. O depositário infiel responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da justiça. [4] RESPONSABILIDADE CIVIL. Adultério. Dano moral. Não ocorrência. Mera violação do dever de fidelidade, sem que seja dada visibilidade proposital e com intuito difamante, do que não decorre a dever de reparar o abalo que possa ter sido ocasionado por essa conduta. Honorários advocatícios sucumbenciais que devem. Guardar razoabilidade e proporcionalidade, consoante o artigo 8º do CPC/2015. Recurso provido em parte. (TJSP; AC 1000432-45.2015.8.26.0238; Ac. 13138809; Ibiúna; Quarta Câmara de Direito Privado; relator desembargador Alcides Leopoldo; Julg. 02/12/2019; Djesp 05/12/2019; Pág. 2904). [5] A monogamia não é um princípio de direito estatal, mas uma característica histórica, sociológica e cultural do Direito de Família ocidental e, ao mesmo tempo, uma regra proibitiva de múltiplas relações matrimonializadas. [6] A infidelidade no plano moral, ainda que muitas vezes não esteja adequadamente aparelhada com sanções eficazes, é objeto de arraigado juízo de reprovabilidade social. [7] O trust é uma criação do direito anglo-americano e constitui espécie do gênero negócio fiduciário, na medida em que o fiduciante (settlor), transmite, em fiducia, a titularidade formal (trust-ownership) do patrimônio (trust fund) ao fiduciário (trustee), com a obrigação de custodiá-los ou administrá-los, estabelecendo a obrigação do trustee retransmiti-los, verificada condição ou termo, ao beneficiário indicado no ato de constituição do trust . Propicia a transferência do domínio resolúvel e da posse indireta dos bens ao trustee, resolvendo-se o direito deste com a verificação da condição ou do termo. O trustee adquire a propriedade dos bens transmitidos, mas não é proprietário pleno. Apenas detém propriedade resolúvel que, por sua vez, confere-lhe todos os direitos de dono, ainda que seja temporariamente. Cf. CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária- negócio fiduciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 17. [8] Disponívell em < https://livecoins.com.br/marido-esconde-milhoes-em-bitcoin-durante-o-divorcio/amp/> Acesso em: 07/06/2023.Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).
Fonte: ConJur