Até que momento deve ocorrer o prolongamento artificial da vida humana e qual o limite para o ato de disposição desse bem fundamental? Como lidar com a possibilidade da morte próxima e de como se quer morrer? É possível pensar no conceito de morte digna e o direito a decisões e escolhas no final da vida? Há correlação entre a autodeterminação e a responsabilidade civil e criminal do médico?
Este artigo não tem a pretensão de ser exaustivo na resposta às questões acima, mas informar acerca dos principais elementos constitutivos do referido negócio jurídico unilateral e o ponto de contato (1) do direito do paciente à informação adequada e à sua autodeterminação com (2) a responsabilidade civil e criminal do profissional médico.
São questões que vêm ganhando cada vez mais relevância diante, primeiro, do aumento da expectativa de vida e, segundo — mas também como pressuposto da primeira hipótese — a crescente evolução da Ciência Médica, com a pesquisa e desenvolvimento não apenas de novos medicamentos e aparatos que cumprem a função de órgãos lesados ou em colapso (respiradores, corações artificiais, circulação extracorpórea e outros), no que contribuem para prolongar os estados terminais, mesmo sem existir qualquer possibilidade concreta de cura ou recuperação dos pacientes [1].
Acerca da denominação testamento vital, embora aceita pela doutrina majoritária, cabe considerar que inexiste tratamento legislativo no Brasil sobre essa específica relação social, o que levou o Conselho Federal de Medicina a editar a Resolução 1.995/2012 denominando-o como diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, referindo-se às manifestações personalíssimas e extrapatrimoniais [2].
Adotada a terminologia que se popularizou, com as anotações sobre divergências acima postas e suas repercussões práticas, passa-se a destacar algumas problemáticas peculiaridades do instituto.
Conforme acima elencado, inexiste lei específica sobre a matéria, ou seja, aprovada com a legitimidade democrática própria e exclusiva de normas que passaram pelo processo legislativo previsto constitucionalmente, de modo que a matéria acaba por ser regulada pelas regras gerais do Código Civil (verbi gratia artigo 104), referida Resolução 1.995/2012 do CFM, acompanhada, às vezes, da citação do Enunciado 37 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ.
Regulação a partir da qual extrai-se o objetivo da diretiva antecipada de vontade, representado no consentimento — ou melhor, a falta deste em relação a certos cuidados e tratamentos médicos num eventual momento futuro no qual o paciente, por qualquer motivo, esteja impedido de manifestar sua vontade [3], constando dos “considerandos” que abrem a Resolução os motivos do CFM: proteger a autonomia do paciente, exercida por meio da diretiva antecipada de vontade, frente a cuidados e tratamentos médicos que prolonguem a vida do paciente terminal, sem oferecer possibilidade de cura, e disciplinar a conduta médica quando houver tal diretiva.
O artigo 1º da Resolução define o que são diretivas antecipadas de vontade: como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Há, portanto, previsão regulatória de declaração de vontade do paciente quanto aos procedimentos médicos que, futuramente, não poderão ser realizados sob pena de agir o médico contra sua vontade.
Frente à enunciada diretiva, o comportamento do médico é objeto do Artigo 2º da Resolução, quando afirma que este levará em conta o que estiver disposto na declaração de vontade do paciente, o que dever ser interpretado em conjunto com seu parágrafo terceiro, que assim dispõe: “As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive os desejos dos familiares”.
Pressuposto normativo a partir do qual o médico poderá ou não agir conforme a vontade previamente declarada do paciente. Obviamente, é de se entender o receio de responsabilização civil ou criminal do médico que deixa de agir por conta de documento que, afinal de contas, não possui disciplina expressa em lei. Mas, é evidente que a diretiva perde muito de sua força e de sua razão de ser se o médico tiver a discricionariedade de atende-la ou não.
O mesmo artigo 2º, em seu parágrafo primeiro, dispõe que o paciente poderá nomear representante para tal fim, ou seja, o representante não decide ele mesmo sobre a conveniência ou não do tratamento ou cuidado. Não é ele que dá o consentimento, mas sim quem transmite a vontade do paciente.
Relevante aspecto de dever imposto ao médico pela resolução aqui analisada, é o conteúdo do artigo 2º em seu §4º, no sentido de que caso o paciente lhe comunique, expressa e diretamente, sua diretiva antecipada de vontade, deverá registrá-la em seu prontuário.
Há previsão no ato normativo indicativa de que o médico não atenderá a diretiva antecipada contrária ao Código de Ética Médica (artigo 2º, §3º) e, não havendo representante, familiares (ou não havendo consenso entre eles) ou diretiva antecipada, o médico, se julgar necessário, poderá recorrer, dentre outros, ao Conselho Estadual ou Federal de Medicina (artigo 2º, §5º).
Alguns aspectos problemáticos [4] devem ser também sumariados, ante a complexidade e sensibilidade que demanda a análise da matéria, cabendo analisar, em primeiro lugar, se o sujeito seria apenas o doente terminal (essa é a previsão expressa do PL 149/2018, em seu artigo 2º, III, ainda em tramitação no Congresso), discussão quase sempre acompanhada de consideração acerca da morte digna [5].
Conforme referido por Viviane Ferreira e Rafael Longhi, em capítulo específico [6], a diretiva antecipada de vontade não tem a ver apenas com a dignidade na morte, mas com o exercício de direito que existe também em outras fases da vida: o direito à integridade física e a recusar, dentro de certos limites estabelecidos, pela ordem jurídica, a intervenção de terceiro para a qual o titular do direito não tenha dado seu consentimento.
Portanto, os efeitos não são gerados não apenas no caso de morte anunciada ou no final da vida; em relação ao sujeito, seu requisito especial é o fato de, no momento em que a diretiva deva gerar seus efeitos, ele esteja impossibilitado, em razão de doença ou estado de saúde, de expressar sua vontade. O que está em jogo não é a irreversibilidade do quadro clínico, mas garantir a autonomia privada e o direito à autodeterminação.
Em relação à forma, a resolução não exige expressamente uma forma específica para a diretiva antecipada de vontade, afirmando — como já mencionado — que o médico deverá registrar no prontuário do paciente o que este lhe informar diretamente (artigo 2º, § 4º), privilegiando-se a forma escrita, como requisito de validade e prova do negócio jurídico, notadamente em razão da condição suspensiva da qual depende sua eficácia (verbi gratia sua eficácia depende de doença ou estado de saúde futuro que impossibilite a manifestação de vontade do paciente).
O conteúdo da diretiva antecipada diz respeito ao consentimento, no sentido de que o paciente dá ou nega consentimento para tratamentos ou intervenções médicas que não lhe tragam benefício apenas prolongando sua vida sem oferecer cura, devendo ainda ser determinados (cf. artigo 1º da Resolução 1.995/2012). Por se referir o direito em questão a à integridade física — ou de não ter sua integridade física violada sem o seu consentimento — há adjetivação de irrenunciável e intransmissível.
Simbioticamente ligado ao parágrafo acima, está o dever de informação que marca a relação médico-paciente, conforme impõe o artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, e o próprio Código de Ética Médica (artigo 34). Não basta a capacidade e a maioridade civil quando da declaração contida na diretriz; o paciente deve consentir ou recusar consentimento ciente do significado concreto do seu ato de consentimento ou recusa.
A ausência de lei formal/objetiva ganha maior relevância na exposição subsequente quanto à (in)suficiência normativa para fins de responsabilização civil e criminal/penal do médico diante das diretrizes antecipadas delimitadas no objeto de análise deste estudo: o “testamento vital” (ou diretrizes antecipadas de vontade do paciente), mostrando-se a Resolução 1.995/2012 do CFM manifestamente insuficiente para atender às necessidades de segurança jurídica de pacientes e médicos.
É certo que a referida resolução obsta a responsabilização ética do profissional que atende ao comando normativo estipulado. Entretanto, os limites a um questionamento da responsabilidade civil e criminal do médico não surgem balizados por esta resolução, mas sujeitos à legislação federal aplicável e aqui aumentam às incertezas existentes em razão da lacuna legislativa.
Logo, a mesma conduta do médico, ativa ou passiva, por ação ou omissão, quando danosa, pode gerar responsabilidade civil e/ou criminal, coincidindo as esferas em alguns pontos. Ambas pressupõem um resultado danoso para o bem jurídico considerado — a saúde do paciente —, a ação ou omissão desviada dos deveres de cuidado e a relação de causalidade.
O Código Penal prevê a possibilidade de o médico intervir na integridade física mesmo sem o consentimento do paciente, conforme consta do art. 146: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Prevê, ainda, excludente de ilicitude no §3º, excepcionando a atuação dos médicos em caso de emergência com risco de morte: não se compreendem na disposição deste artigo: (…) I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Outra hipótese prevista no Código Penal é o crime de omissão de socorro (cf. artigo 135), incidente quando o médico não intervier quando estiver em risco a vida do paciente.
Em um ou outro caso, nos exemplos aqui elencados, a discussão não é afastada pela simples previsão de uma diretiva antecipada de vontade, o que incremente ainda mais as dificuldades de uma percepção sobre o efeito vinculativo das diretrizes antecipadas de vontade nos estreitos limites do direito penal.
Ainda conforme Miguel Kfouri Neto, no Brasil, a manifestação de dissenso do enfermo, quanto à adoção de prática terapêutica que possa salvá-lo, não tem sido admitida. Valha como exemplo a recusa à transfusão de sangue, por testemunhas de Jeová. Citando expressamente José Henrique Pierangelli [7], destaca o entendimento de que (…) quando existir um caso de socorro urgente e impostergável, que não permite recorrer-se ao juiz, o médico deverá intervir para impedir a morte da pessoa incapacitada de consentir ou para evitar que subsista um dano grave à pessoa. Quando, contrariamente, faltarem esses pressupostos, o médico deve recorrer ao juiz, que, então, valendo-se do conflito de interesses e no interesse do incapaz, decidirá. O dissenso do representante legal, em tal situação, pode ser superado pela providência judicial [8].
Dificuldades traduzidas em aspectos práticos do dia-a-dia da atuação médica, como em casos de piora gradativa do quadro clínico do paciente a propiciar a adoção de maiores cautelas para o profissional da medicina sobre o porvir do tratamento em uma situação de irreversibilidade.
Além disso, a emergência médica e aquelas de intermediação ou intervenção de terceiro para tomar a decisão sobre o tratamento médico são as que têm o condão de gerar as maiores dificuldades práticas, justamente porque o médico pode ter de lidar com uma vontade que não lhe é diretamente declarada pelo paciente.
O Código de Ética Médica até prevê, no parágrafo único do artigo 41, a possibilidade de que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”, disposição que conflita com outro ato normativo emanado pelo próprio CFM, pois o artigo 41 acima citado deixou de dispor sobre a forma de expressão dessa vontade, o que veio somente com a Resolução 1.995/2012, a privilegiar a forma escrita (cf. acima, artigo 2º, §4º).
Conflito aparente que se constata no quadro de análise entre o artigo 2º, §2º, da Resolução, a regrar que “o médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica”. Em contrapartida, o artigo 31 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.
Tem-se, nesse contexto, que a existência de uma diretiva antecipada de vontade em sentido contrário ao tratamento a ser recebido não possibilita entender que há um consentimento presumido do paciente em favor da vida a justificar uma violação de sua integridade física e, em tais termos, uma excludente de responsabilidade. Se é patente o caráter subsidiário do agir do profissional da medicina que se desvincula da vontade do paciente, mas avança sobre a integridade física dele, o que fazer quando se conhece de antemão essa manifestação contrária do paciente, ainda quando haja iminente risco de morte? [9].
Como conciliar precisamente os dois pontos, quais sejam a atuação do profissional de saúde direcionada à preservação da vida e a tutela de uma diretiva antecipada de vontade, é algo a ser equacionado legislativamente, garantindo-se a ampla participação de profissionais e entidades representativas, para fins de assegurar o pluralismo de opiniões e maior legitimidade democrática da lei de regência sobre relação social tão sensível e delicada, por tratar de tema tão, ao mesmo tempo, certo e temido: a morte e suas implicações.
[1] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2021, p. 390.
[2] RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D. Responsabilidad del médico. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 90.
[3] Ibid., p. 111.
[4] Ibid., p. 113-120.
[5] BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: Dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Consultor Jurídico, 11.07.2012, disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jul-11/morte-ela-dignidade-autonomia-individual-final-vida. Acesso em 10 de abr. de 2023.
[6] ESTELLITA, Heloisa. SIQUEIRA, Flávia (org.). Direito penal da medicina. 1º Bloco — respeito à autonomia do paciente, São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 114.
[7] O consentimento do ofendido na teoria do delito. São Paulo: RT, 1989, p. 207.
[8] KFOURI NETO, op. cit., p. 403.
[9] ESTELLITA, op. cit., p. 125.
Daniel Ferreira Filho é advogado criminalista e especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura do Paraná (Emap).
Gabriel Gaska Nascimento é advogado criminalista, mestrando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) e especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS.
Fonte: Conjur