Victor e Luiza começaram a fazer provas ainda no 3º ano da faculdade e aprenderam a aproveitar, juntos, a jornada de estudos pelo país. Em outubro, eles assumiram como tabeliães de dois cartórios em SP.
De estudantes de direito a concurseiros. E de concurseiros a titulares de cartórios — aos 23 e 24 anos.
Tudo isso em uma trajetória que envolveu viagens para vários estados brasileiros, esperas em aeroportos, destinos paradisíacos, início de um romance e, claro, muuuito estudo.
Victor Volpe Fogolin, 23, e Luiza Dias Seghese, 24, assumiram em outubro como tabeliães de dois cartórios no interior de São Paulo.
E, antes do título no estado em que eles moram, os dois viajaram o Brasil colecionando aprovações: Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Goiás e Tocantins (além de Rondônia, no caso da Luiza).
Tabeliães são profissionais do direito responsáveis por colher a vontade das pessoas e transformá-la em um instrumento com validade jurídica, explica o Colégio Notarial Brasileiro (CNB).
Eles estão à frente dos Cartórios de Notas; que fazem escrituras públicas, testamentos, autenticações e reconhecimento de firmas, por exemplo; e dos Cartórios de Protesto, que trabalham com o protesto de dívidas.
Há ainda os registradores, responsáveis pelos Cartórios de Registro Civil (nascimentos, casamentos e óbitos), Registro de Títulos e Documentos (registro de empresas e pessoas jurídicas) e Registro de Imóveis.
Para se tornar titular de um desses cartórios, é preciso ter diploma de bacharelado em direito e ser aprovado em concurso público realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado.
A medida é prevista na Constituição Federal desde 1988, mas, em alguns estados, esses concursos são relativamente recentes.
Luiza, que é de Sorocaba (SP), assumiu o Registro Civil e Tabelionato de Notas em Cosmorama (SP), e Victor, de Campo Grande (MS), virou titular do Tabelionato de Notas e Protesto de Letras e Títulos de Estrela D’Oeste (SP).
São cartórios bem próximos, que permitem que os dois continuem traçando juntos o caminho que escolheram no início da faculdade, quando ainda eram apenas colegas.
Os dois se formaram em direito na USP em 2021. Eles contaram que começaram a estudar para os concursos de cartório no terceiro ano da graduação e fizeram as provas ao longo de 2021, 2022 e 2023, quando vieram as aprovações.
“Hoje nós temos a honra de sermos os tabeliães mais jovens do país, aprovados no concurso. Acho que não caiu a nossa ficha ainda. A gente está muito realizado”, diz Victor.
O g1 procurou o Conselho Nacional de Justiça? (CNJ) para tentar obter informações sobre a idade dos tabeliães brasileiros, mas o órgão sugeriu questionar a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), que disse não existir esse dado nacional atualizado.
Por que cartório?
Para Luiza, a carreira em cartório foi sonhada ainda no ensino fundamental e a direcionou para escolher a faculdade de direito.
No caso do Victor, a ideia surgiu durante um estágio no início da graduação, quando percebeu que juízes com quem ele trabalhava estavam estudando para o concurso de cartório.
“Isso me acendeu uma luz. Eu falei: ‘Ué, esse cara é juiz e está estudando para cartório? Como assim?’ Aí eu fui pesquisar”, relata.
Titulares de cartório estão no topo da lista dos profissionais mais bem remunerados do Brasil, de acordo com dados da Receita Federal sobre o detalhamento das declarações de imposto de renda em 2021 (último dado disponível).
O rendimento médio mensal dos donos de cartório era de R$ 136,4 mil naquele ano, conforme o levantamento do g1 a partir dessas informações. No entanto, esses valores podem variar consideravelmente de cartório para cartório, e em cada estado.
Esses profissionais também não possuem salário fixo e recebem a partir do faturamento de suas unidades. Do valor total, são deduzidas as despesas legais e de funcionamento do cartório e os impostos. O que sobra é rendimento do titular.
Assim, “a renda final dos titulares de cartórios é bem menor do que aquela que aparece nos dados da Receita pois eles pagam todos os salários a partir de sua renda total”, explica Marcelo Medeiros, especialista em desigualdade e pesquisador na Universidade Columbia em Nova Iorque.
“Se não for a única, é uma das únicas profissões do direito em que é possível unir a gestão com conhecimento técnico jurídico. Os cartórios são empresas, a gente está assumindo empresas em andamento, empresas que já estão virando. A gente vai buscar melhorar os processos dela, a forma como atender as pessoas, a qualidade, tudo isso”, afirma Victor.
“Também me encantou a liberdade que você ganha. Uma vez estruturado o cartório, você ganha uma liberdade de tempo, de poder estar ali como gestor. Então, você vai estar ali acessível para o conhecimento jurídico, mas eu tenho um projeto de família. Vou poder conciliar esse mundo com a minha família, estar presente e tudo mais”, acrescenta Luiza.
Foi dada a largada!
A partir do momento em que os cartórios se tornaram um objetivo, Victor e Luiza passaram a trabalhar para isso. Na faculdade, os dois se tornaram amigos por causa da meta em comum.
“A primeira vez que eu me lembro de conversar com o Victor foi no corredor dos elevadores da faculdade. Ele me falou que ia prestar o concurso de cartório do Mato Grosso do Sul. Daí eu olhei para ele e pensei: ‘Meio doido, né?’ Porque é um concurso difícil”, relata Luiza.
“Eu tinha uma ideia de prestar só depois da faculdade. Eu tinha medo de me desafiar, de já me expor a isso desde tão cedo e eventualmente fracassar. E aí o que ele me falou ficou muito na minha cabeça. Ele disse: ‘Olha, esse concurso vai demorar. Até terminar, a gente já vai estar formado.’ E isso me pareceu certo”, diz.
Concursos de cartório têm quatro etapas: prova de testes, discursiva, oral e de títulos, na qual o candidato precisa apresentar quais cursos fez de pós-graduação, mestrado, doutorado, etc.
Para o jovem casal, essa foi uma grande barreira. “O pessoal que tem [esses títulos] já sai muito na frente. Eu e a Luiza, por sermos novos, a gente sabia que a gente tinha que estudar e ir muito melhor nas outras provas do que as pessoas mais velhas, para compensar essa falta”, afirma Victor.
O concurseiro também explicou que, além das várias fases, os concursos de cartório costumam demorar porque muitos candidatos entram com recursos ao longo do processo.
O bacharelado em direito só precisa ser comprovado no momento da inscrição definitiva no cartório, após a aprovação no concurso. Por isso, não existe impedimento para que estudantes realizem as provas.
Rotina de estudos
Foram muitos dias de muito estudo, cada um com suas técnicas e experiência, mas sempre compartilhando dicas e resumos.
“O Victor, por exemplo, gosta de estudar em qualquer lugar. Ele está na rede, ele está estudando, está num puff, no avião, está estudando. Eu fui ganhando com ele esse hábito também de não me restringir a lugares, mas eu ainda gosto de ter um lugar fixo. Eu tenho, desde o ensino fundamental, os mesmos móveis que são meu escritório”, conta Luiza.
Para a tabeliã, a estratégia é “manter os propósitos à vista”. “Eu tenho no escritório o meu canudo do ensino médio, uma bonequinha de quando meu avô morava na Paraíba e eu fui visitá-lo… Eu sou católica, então eu gosto de envolver Deus no meu estudo e sempre tenho a Nossa Senhora Desatadora dos Nós na minha mesa, um crucifixo… Também tem uma foto da minha mãe, então eu penso nela e no quanto ela se esforçou por mim.”
os sonhos dele e colá-la na parede. “Então, naqueles momentos que a gente sentia preguiça, não queria estudar, eu olhava a foto e falava: ‘Vou continuar’. Era um esforço diário para incentivar a gente.”
Uma dica do tabelião de 23 anos é envolver a família nos estudos, para não perder momentos importantes. “Eu já chamei a minha irmã várias vezes para me ajudar a revisar as matérias, então ela lia e fazia perguntas para mim. Já era um treino de prova oral”, relata.
“Outra coisa legal é estar em grupos de pessoas com o mesmo objetivo, então a gente tinha vários amigos estudando, fez novos amigos no caminho e isso tornou tudo muito mais leve”, continua Victor.
O casal também adotou um “sistema de recompensas” para fazer atividades divertidas depois do estudo de uma matéria difícil.
“Eu estudava a lei e ia fazer uma coisa que eu gostava: jogar bola, comer um chocolate… E acabou que, quando você associa coisas assim, a sua mente já sente o prazer no momento anterior. E quando você começar a ler essas coisas já vai ficar feliz”, afirma Victor.
“A maior dica é que você tem que amar. Não é uma coisa que você já nasce, você adquire o amor pela matéria, instituindo mini-hábitos, conhecendo pessoas legais e no mesmo objetivo e transformando tudo na forma mais prazerosa, envolvendo a família.”
Nem só de estudos vive um casal concurseiro…
Foi do amor pelos cartórios, e por todo o processo que leva até eles, que também surgiu o romance entre os dois concurseiros. Os colegas de faculdade viraram amigos viajantes e, por fim, namorados.
“Só tinha eu e ele. A gente estava viajando para os concursos e são muitos desafios, para além da prova. É hotel, geralmente lotado, provas canceladas, voo, espera em aeroporto… Eram tantas coisas acontecendo e ele era a pessoa que mais entendia o que eu estava passando”, conta Luiza.
Durante as viagens para as provas, o casal aproveitou para conhecer os pontos turísticos dos estados em que estava. Todos os custos dessa trajetória foram pagos com a ajuda da família dos dois.
Para Victor, os passeios eram a grande recompensa após as etapas dos concursos, semelhante aos pequenos prazeres que ele tinha depois de algumas horas de estudo.
“A gente sabia que era uma jornada longa e a gente sempre acreditou que era gostoso curtir o caminho. Então a gente fazia a prova e, no dia seguinte, ia conhecer o estado, ficava uns dois dias a mais.”
E a lista de passeios nos últimos anos é longa: “No Mato Grosso do Sul, a gente foi para o Pantanal. Em Santa Catarina, conhecemos as praias, Bombinhas, Camboriú… Em Tocantins, a gente conheceu o Jalapão. Tem também os concursos que fizemos e ainda estão em andamento. No Maranhão, fomos para os Lençóis Maranhenses; em Alagoas, Maragogi.”
“Fazer prova se tornou o momento mais feliz da minha vida. Eu ia fazer prova tão feliz. Eu já começava fazendo a mala, pensando nas roupas, começou a ser tão gostoso. Eu esperava pelo momento de a gente entrar no avião e até as provas eu fui fazendo melhor. Eu acho que os resultados são uma influência clara disso”, diz Luiza.
E o que vem agora?
Victor e Luiza assumiram como tabeliães e estão morando em Votuporanga (SP), o “meio termo” que encontraram entre as cidades dos seus cartórios.
E a jornada não para por aí: “A gente deu o primeiro passo, que foi entrar na carreira, né? Agora, como em qualquer outra carreira, a gente vai crescendo dentro dela, estudando e aprendendo. A ideia é manter o ritmo”, completa Victor.
Fonte: G1